A Guerra na Ucrânia — O medo da “bomba suja” na Rússia. Por Scott Ritter

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

O medo da “bomba suja” na Rússia

 Por Scott Ritter

Publicado por  em 25 de Outubro de 2022 (original aqui)

 

A Rússia parece estar legitimamente preocupada com a possibilidade de a Ucrânia construir e utilizar uma “bomba suja”, de tal forma que deu o passo sem precedentes de contactar várias autoridades de defesa ocidentais de alto nível.

 

No espaço de algumas horas de domingo, as mais altas autoridades de defesa russas – o Ministro da Defesa Sergei Shoigu e o General Gennady Gerasimov – telefonaram aos seus homólogos nos EUA, Reino Unido, França, e Turquia, com a mesma mensagem – a Ucrânia prepara-se para detonar uma chamada “bomba suja” – material radiológico altamente explosivo, concebido para contaminar grandes áreas com isótopos radioactivos mortais.

A Rússia não só está preocupada com o impacto imediato da detonação de uma tal bomba pela Ucrânia em termos dos danos que seriam causados às pessoas e ao ambiente, mas também com o potencial de um tal evento ser utilizado pelos aliados ocidentais da Ucrânia para intervir directamente militarmente no conflito em curso, semelhante ao que ocorreu na Síria quando alegações sobre a utilização do agente nervoso Sarin pelo governo sírio contra civis foram utilizadas pelos EUA, Reino Unido e França para justificar um ataque aos alvos militares e de infra-estruturas sírios. (Verificou-se que as alegações sobre a utilização de Sarin eram falsas; o júri ainda não se pronunciou sobre a utilização de cloro comercial como arma).

O Presidente da Rússia Vladimir Putin com o Ministro da Defesa da Rússia Sergey Shoigu após uma cerimónia de colocação da coroa de flores no Túmulo do Soldado Desconhecido. (Kremlin.ru, CC BY 4.0, Wikimedia Commons)

 

A Rússia vai levantar a questão no Conselho de Segurança da ONU na terça-feira, informou a Reuters.

Em contrapartida, os governos ocidentais na segunda-feira acusaram a Rússia de planos para implantar uma bomba suja. “Temos sido muito claros com os russos … sobre as graves consequências que resultariam do uso nuclear”, disse o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price. “Haveria consequências para a Rússia, quer utilizasse uma bomba suja ou uma bomba nuclear”.

A Ucrânia está a solicitar que a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) envie uma equipa à Ucrânia para investigar.

 

Um fracasso de bomba

Pese embora toda a atenção da imprensa que tem sido dada à possibilidade de uma “bomba suja” ser utilizada na Ucrânia, a história mostra que apesar da propaganda, uma “bomba suja” não é uma arma que seja facilmente produzida ou adquirida ou que cause o tipo de baixas em massa que os seus proponentes esperam.

O actual medo da “bomba suja” não é a primeira confrontação da Rússia com este conceito. Em Novembro de 1995 foi descoberta no Parque Ismailovsky em Moscovo uma “bomba suja” constituída por altos explosivos e césio, e em Dezembro de 1998 foi encontrado outro esconderijo de material radioactivo ligado a uma carga explosiva perto de uma via férrea na Chechénia. Ambos os dispositivos foram desarmados pelas forças de segurança russas.

Em Maio de 2002, agentes do FBI prenderam José Padilla, um cidadão americano que se converteu ao Islão, ao regressar aos Estados Unidos de uma viagem que o levou ao Egipto, Paquistão, e finalmente ao Afeganistão, onde, em 1999-2000, alegadamente se encontrou com Abu Zubaydah, o chefe de operações de Osama Bin Laden. De acordo com Zubaydah, ele e Padilla discutiram a possibilidade de Padilla construir e detonar uma “bomba suja” dentro dos Estados Unidos.

Embora a Al Qaeda tivesse aparentemente elaborado planos para tal arma – e de facto tivesse acumulado isótopos médicos radioactivos para uso numa “bomba suja” (estes materiais foram apreendidos pela ONU em 2002) – nenhuma destas informações foi partilhada com Padilla, que chegou aos EUA sem um desenho de arma nem meios para realizar a tarefa. Não obstante, foi julgado e condenado.

O mais próximo que o mundo esteve da produção e emprego de uma verdadeira “bomba suja” foi em 1987, quando o Iraque construiu e testou quatro dispositivos concebidos para espalhar uma nuvem de poeira radioactiva com o objectivo expresso de matar humanos – neste caso, soldados iranianos (o Iraque estava, nessa altura, envolvido num longo e sangrento conflito com o Irão).

O dispositivo em questão – uma bomba lançada pelo ar com 12 pés de comprimento e peso superior a uma tonelada – era, segundo documentos entregues pelo Iraque aos inspectores das Nações Unidas, destinado a ser lançado em áreas de tropas, centros industriais, aeroportos, estações ferroviárias, pontes e “quaisquer outras áreas que o comando decretar”.

De acordo com o documento, a bomba destinava-se a induzir a doença da radiação que “enfraqueceria as unidades inimigas do ponto de vista da saúde e infligiria perdas que seriam difíceis de explicar, possivelmente produzindo um efeito psicológico”. A morte, observou o documento, ocorreria “dentro de duas a seis semanas”.

Os iraquianos escolheram o zircónio como a sua fonte radioactiva. Os iraquianos tinham zircónio em quantidades devido à sua utilização em armas incendiárias. Ao irradiar flocos de zircónio no reactor nuclear iraquiano localizado em Tuwaitha, os iraquianos produziram o isótopo radioactivo Zircónio 95, que tinha uma meia-vida de 75,5 dias, o que significava que a bomba teria de ser utilizada pouco tempo depois de ter sido fabricada.

A arma foi testada três vezes em 1987, incluindo um teste final envolvendo duas verdadeiras “bombas sujas” lançadas por aviões. As armas foram um fracasso, perdendo as suas propriedades radioactivas pouco tempo depois da detonação. De facto, seria necessário estar a três metros do ponto de detonação da bomba para absorver uma dose letal de radiação, algo que a elevada carga explosiva da bomba em si mesma fez com que fosse discutível. O projecto foi abandonado.

Os resultados iraquianos foram replicados por Israel que, entre 2010 e 2014, realizou 20 testes explosivos de “bombas sujas” reais no deserto de Negev. A investigação descobriu que a radiação foi dispersa de uma forma que o perigo que representava para os humanos não era substancial, concluindo que “o principal impacto de tal ataque seria psicológico”.

 

Bandeira Falsa, ou Falso Alerta?

Os russos levam a sério a ameaça colocada pela possibilidade de uma “bomba suja” ucraniana. Embora a história das “bombas sujas” não aponte para uma ameaça à escala ou com o alcance de uma arma nuclear real, pode-se colocar “na pior das hipóteses” um cenário que proporcione o potencial para a perda significativa de vidas e bens devido à precipitação radioactiva que tal arma poderia produzir. Tal resultado seria um desastre que a Rússia e, presumivelmente, os aliados ocidentais da Ucrânia gostariam de evitar.

Até agora, as alegações russas parecem ter caído em saco roto, com a Ucrânia a rejeitar as alegações como absurdas, e os analistas ocidentais não alinhados com os governos a inverterem o guião, acusando a Rússia de estar realmente a planear um ataque com uma falsa bandeira à Ucrânia usando uma “bomba suja” da sua própria construção.

Mas a realidade é que a Rússia leva muito a sério as suas ligações entre militares superiores e os seus homólogos ocidentais, dado o papel que tais contactos desempenham no tipo de cooperação de diminuição de conflitos que impede que incidentes de pequena escala degenerem em guerra. A possibilidade de a Rússia corromper deliberadamente este canal de comunicação com desinformação é altamente improvável. A Rússia parece estar legitimamente preocupada com a possibilidade de a Ucrânia construir e utilizar uma “bomba suja”, de tal modo que deu o passo sem precedentes de contactar várias autoridades de defesa ocidentais de alto nível para impedir que tal ocorrência acontecesse.

Se, no final do dia, os telefonemas apropriados forem feitos pelo Ocidente, e a Ucrânia recuar, então a Rússia terá sido bem sucedida. E se se verificar que as informações russas estão erradas, não houve qualquer prejuízo com o esforço feito. No entanto, se a Rússia estiver correcta, e a Ucrânia não só se prepara para usar uma “bomba suja”, como também detona uma, e o Ocidente não fez nada para a impedir, então a Rússia será reconhecida por ter avisado devidamente o Ocidente.

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O autor: Scott Ritter é um antigo oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA que serviu na antiga União Soviética implementando tratados de controlo de armas, no Golfo Pérsico durante a Operação Tempestade no Deserto e no Iraque supervisionando o desarmamento das ADM. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, publicado pela Clarity Press.

 

 

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